Quando o dia é de cão (no bom sentido)

Por Thomaz Brandolin - Revista Melhor Gestão de Pessoas - Ago/2006

Ano 14 - nº 225 www.revistamelhor.com.br

 

Nem sempre é o líder quem decide. O problema é saber o momento certo de passar a bola – ou ouvir quem não fala.

 

Estava 38 graus abaixo de zero! Em volta, o silêncio era perturbador. Para onde quer que se olhasse, só se via o branco do gelo e da neve a perder de vista. Nenhum ser humano num raio de dezenas de quilômetros - exceto eu e um cão polar chamado Bruno. Há dias que estávamos caminhando pelo infinito da calota polar do Oceano Ártico, rumo ao Pólo Norte Magnético.

 

Numa situação dessas seria evidente que eu teria que tomar todas as decisões. Certo? Errado. Várias vezes, quem "decidia" era o Bruno, obviamente sem palavras, só com atitude. De repente ele parava, examinava o terreno à frente e se recusava a seguir. No começo eu insistia, "argumentava" que não queria aumentar o trajeto, mas não adiantava. Então, resignado, fazia (ele um pouco mais adiante) um longo desvio pelo gelo para, mais adiante, retomar o caminho original.

 

Eu, líder da "equipe", custei um pouco a perceber que naquela situação eu deveria deixá-lo liderar. Para meus olhos "urbanos de São Paulo", o gelo era igual em todos os lugares. Mas ele "sabia" que não era bem assim. Afinal, ele era um cão esquimó. Pelo olfato, ou pelo instinto (ele nunca deixou isso claro) ele sabia onde o gelo era mais fino, quebradiço ou com bolhas de ar, e os evitava. Nesse sentido, salvou minha vida algumas vezes.

 

No quinto dia da nossa jornada, ele já havia mostrado seu valor. Uma tempestade ameaçava chegar. Na dúvida entre prosseguir ou não, decidi esperar. Enquanto isso o cão dormia tranqüilamente. Em pouco tempo a tempestade nos castigava. No dia seguinte, a mesma indefinição. Também fiquei na dúvida. Mas dessa vez o cão estava excitado para prosseguir a jornada. Lentamente me preparei para caminhar. Não demorou e o sol e o céu azul apareceram. Em reconhecimento à sua "competência", nesse dia "promovi" Bruno a meteorologista de expedição.

 

Embora o cão estivesse comigo apenas para me proteger dos ursos polares (e protegeu), graças aos seus "conhecimentos", às suas "competências" e "feeling", ele me ajudou em várias outras funções.

 

Assim, pude refletir:

Muitas vezes no nosso dia-a-dia, não damos a menor atenção àquelas pessoas que trabalham "quietas" na nossa área, geralmente as mais tímidas, achando que elas não "entendem" do nosso problema. Quantas vezes nem prestamos atenção a elas? Às suas experiências anteriores? Só porque uma pessoa foi contratada para a função A, não quer dizer que ela não entenda da B. Será que ao tomar uma determinada decisão, levamos em conta as opiniões dos diretamente afetados, ou pensamos nas conseqüências sobre nossos companheiros de jornada? Quantas vezes queremos decidir tudo sozinhos por que somos o "chefe", até por uma questão de auto-afirmação perante o grupo e perante nós mesmos? Não é o caso de delegar todas as decisões, mas de perceber quando devemos deixar que outra pessoa, por seus conhecimentos ou competências, lidere. E isso serve também para quem está do outro lado. Muitas vezes vemos o líder quebrando a cabeça para tomar uma decisão importante e, mesmo sabendo a solução, não o ajudamos por timidez, insegurança, porque ele não pediu nossa opinião, porque não é essa nossa função, ou por puro receio de levar uma bronca do tipo "quem é você para dar alguma opinião?" Nessa expedição pelo Ártico obtive uma série de aprendizados interessantes, que sempre menciono em minhas palestras.

 

Quando decidi passar algumas semanas numa pequena vila no extremo norte do Canadá, meses antes da expedição, meu objetivo maior era experimentar meus equipamentos em condições extremas de frio. Não estava interessado nas opiniões dos esquimós, pessoas simples que vivem na região. Foi quando um deles viu minhas roupas e comentou que elas não eram adequadas para ir ao Pólo Norte.

 

Novamente, percebi que temos que rever nossos paradigmas sempre que a situação ou o cenário muda. Os esquimós mostraram que minhas roupas – que utilizara numa expedição ao Everest – não serviam para aquele lugar, apesar de, ou justamente por, serem ultra-sofisticadas (impermeáveis, "respiráveis", cheia de zíperes de controle de transpiração) e caríssimas (só a jaqueta custou US$ 500). As mais adequadas, disseram, eram as mais simples, não impermeáveis ("respiram" melhor) e sem zíperes, não "falham" – custaram apenas US$40. Com isso, percebi que:

 

Dependendo da situação, uma pessoa que está fora do projeto, mas que conhece melhor o "mercado", é quem deve ser consultada. Quem vive o dia-a-dia do lugar (pode ser uma vila no Pólo Norte, ou o ambiente de uma fábrica, ou o mercado de uma determinada região) sabe muito mais que nós. Muitas vezes, só eles sabem o que funciona e o que não funciona. Nem sempre o mais caro, ou sofisticado, é melhor. Pelo contrário, às vezes, numa situação de risco (de vida, de prejuízo, de perda de dados) quanto mais simples, menores são as chances de falharem. Assim, quantas vezes trazemos para novas situações um "trenó" cheio de certezas passadas, que se desmancham no primeiro obstáculo?. Quantas vezes fazemos as coisas no "piloto-automático", pois "sempre deu certo”?. Sabemos que a situação mudou, mas continuamos a nos comportar, agir como se fosse a mesma. Três anos depois voltei ao Pólo Norte. Dessa vez integrando uma equipe canadense.

 

Ao contrário da minha experiência solitária (exceto pelo Bruno), quando caminhei com esquis nos pés, eles queriam ir "esquiando" Para isso queriam ir sem "pele" que se gruda na base do esqui (parecida a um carpete), que todo explorador polar utiliza para dar atrito e não escorregar. “Mas porque isso? Todos que vão ao Pólo Norte utilizam a pele embaixo dos esquis. É algo estabelecido no mercado. Porque mexer em time que está ganhando?, perguntei.”

 

Eles eram tão bons esquiadores que abriram mão de um recurso (a "segurança" da pele), para ganhar velocidade. Sem a pele nossa performance melhora em 10 a 15%, me disseram. “Mas sem ela não patinamos”, argumentei. “Não se você tiver a técnica correta de esquiar”, retrucaram.

 

Fui para o Canadá e aprendi essa técnica, absolutamente simples, mas que ninguém tenta porque é mais seguro ir com a pele. Assim, aprendi com os canadenses que ao invés de se preocupar em procurar um caminho novo a seguir, às vezes o segredo do sucesso de uma jornada é encontrar uma forma nova de caminhar.

 

Thomaz Brandolin é autor dos livros: Everest – Viagem a Montanha Abençoada e Sozinho no Pólo Norte (L&PM), Palestrante e Gestor da empresa Avanti Consultores Treinamento e Desenvolvimento – www.avanticonsultores.com.br e www.thomazbrandolin.com.br 




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