A Missão de Salvar o Mundo

HSM Management 56 Maio - Junho 2006

 

Em um belo dia de verão, Jeffrey Swartz, presidente do conselho de administração da Timberland, entrou com passos firmes no escritório de Nova York, onde estavam reunidos diversos executivos do McDonald's. Vestindo jeans e blazer e calçando botas da marca Timberland, Jeffrey tinha como objetivo convencer a gigante do fastfood a adotar seus sapatos e roupas estimados em US$ 1,5 bilhão como novo uniforme da rede. Os executivos do Big Mac, por sua vez, esperavam ansiosos que Jeffrey abrisse uma mala e mostrasse um modeIo novo. "Não trouxemos resposta alguma", disparou Swartz para uma platéia incrédula, antes de começar um entusiasmado discurso que não tinha nada a ver com calçados ou roupas. Segundo ele, o que a Timberland tinha a oferecer ao McDonald's era a oportunidade (para a empresa e para o mundo) de ajudar a construir uma força de trabalho determinada, motivada e coesa, "Muitos outros podem oferecer uniformes. Nós estamos falando de parceria, de criar uma parceria que envolva valores", afirmou Swartz, com forte sotaque yankee, do nordeste dos Estados Unidos.

 

Por mais pouco ortodoxo que pareça, Swartz não estava referindo-se à criatividade ou à capacidade técnica de sua empresa, mas sim a sua cultura e aos modos como essa cultura poderia "contaminar" o McDonald's. Com um entusiasmo cada vez maior, Swartz citou a licença paga de 40 horas mensais que a empresa oferece a cada funcionário interessado em trabalhar como voluntário em projetos sociais. Abordou ainda o Serv-a-palooza, programa de ação social da Timberland que em 2005 abrangeu 170 projetos distribuídos por 27 países, em um total de 45 mil horas de trabalho voluntário. Falou também da City Year, organização sem fins lucrativos mantida pela Timberland há mais de uma década, encarregada de alocar jovens para trabalhar em serviços comunitários.

 

E Swartz resumiu, para arrematar: a Timberland estava presente em praticamente todas as comunidades dos Estados Unidos, assim como o McDonald's -mas será que este trazia contribuições para essas localidades? A platéia ficou em silêncio. Swartz não sabia se as pessoas haviam visto nele um excêntrico sentimental ou se suas palavras as haviam tocado fundo. Marlena Peleo-Lazar, executiva-chefe de criação do grupo, declarou ter gostado da "paixão de Swartz por sua marca". Swartz adorou a experiência, a ponto de orientar sua equipe a encontrar mais dez lugares onde pudesse fazer esse tipo de apresentação. "Ninguém acredita nessa idéia mais do que nós, o que constitui nossa vantagem competitiva", defendeu ele. A "idéia" que tanto entusiasma Swartz (neto do fundador da empresa e terceira geração no comando) está presente no slogan da Timberland "Make it better" (Faça melhor).

 

Na verdade, o que Swartz está tentando fazer melhor é usar os recursos, a energia e os lucros de uma fabricante de roupas e calçados esportivos com presença mundial para combater os problemas sociais, preservar o meio ambiente e melhorar as condições de trabalho em todo o planeta (por mais incrível que pareça). Em vez de usar sua empresa para simplesmente fazer caridade, o empresário utiliza os rígidos conceitos de controle de lucros, retorno sobre o investimento e (sim, também isso) retorno para o acionista para tentar provar que "fazer bem" e "fazer o bem" são noções complementares. Na opinião de Swartz, a idéia de ajudar os outros é uma postura que serve de base para a criação de um corpo de funcionários mais produtivos, leais, eficientes e envolvidos – que por sua vez, são essenciais para a obtenção dos resultados reais.

 

Até agora, Swartz tem-se saído muito bem na tentativa de comprovar sua teoria. Nos últimos cinco anos, a empresa, que produz roupas calçados e acessórios de inspiração outdoor, apresentou um aumento de 9,7% na taxa de crescimento anual composta e de 20% nos ganhos por ação. No mesmo período, o preço das ações aumentou 64%. A empresa também se tornou referência para corporações bem maiores quando o assunto é responsabilidade social.

 

Na opinião de Kevin Martinez, diretor de assuntos da comunidade da Home Depot, "a Timberland possui uma das melhores culturas corporativas entre os varejistas que conheço. Isso ocorre porque muitas peças dessa cultura baseiam-se na ação social". Mas as grandes ambições de Swartz também levam algumas pessoas a questionar se o impulso da Timberland para a sustentabilidade é sustentável em um mundo regido pelo lucro e se é possível conciliar o amoral mundo do capitalismo com o espiritual mundo do trabalho social.

 

Quem acha que a Timberland precisa escolher entre os lucros e a paixão não passou muito tempo conversando com Swartz, um sujeito de 45 anos, divertido, animado e agitadíssimo, que mal consegue controlar a ansiedade quando o assunto é o maravilhoso (e rentável) vínculo entre "a atividade comercial e a justiça", nas palavras do próprio executivo. Vestido com uma camisa de mangas curtas e com um boné de beisebol com a aba voltada para trás, esse presidente de uma empresa estimada em US$ 1,5 bilhão lembra (e às vezes age como) um garoto. Suas palavras se sucedem em desordem, envolvendo piadas auto-irônicas e referências à literatura, ao time de beisebol Red Sox e a textos judaicos. "Algumas coisas para mim têm tamanha clareza, intensidade e força que não consigo tratá-las com a racionalidade que deveria. Vejo como deve ser o resultado, mas nem sempre consigo visualizar sozinho o caminho para chegar a ele", confessa.

 

Mas Swartz nem sempre foi assim. Durante a maior parte de sua vida ele recebeu segundo conta, "uma supereducação direcionada para formar um empreendedor/herdeiro de terceira geração". Em suas palavras: era uma "foca amestrada". Porém as coisas mudaram radicalmente em 1989, quando a então minúscula ONG City Year pediu que a Timberland doasse calçados para seus integrantes. Em pouco tempo, o co-fundador e presidente da organização, Alan Khazei, apresentou um novo desafio a Swartz. "Ele disse: 'Você deve achar que meu trabalho é salvar o mundo e o seu é fabricar calçados. Se você me der meio dia, lhe mostro que as duas atividades podem ser uma só” ‘, lembra Swartz. Acompanhado por nove funcionários, o executivo concordou em ajudar na limpeza da Odyssey House, um abrigo para adolescentes problemáticos. Foi lá que conheceu um jovem que perguntou o que ele fazia. Swartz respondeu que era o COO (chief operating officer, ou executivo-chefe de operações), e o jovem quis saber o que ele fazia de fato. "Sou responsável pela execução global da estratégia", explicou, e perguntou ao garoto o que ele fazia. "Ele deu uma resposta que de certo modo acabou com a minha: disse que seu trabalho era ficar bem", recorda.

 

O momento foi decisivo para modificar a vida de Swartz, que de repente percebeu como seus problemas eram minúsculos na comparação com as dificuldades físicas e emocionais do adolescente. Naquele instante ele sentiu que estava diante de um propósito novo, uma espécie de chamado: ajudar os menos afortunados. "Não foi assustador, mas estimulante. Houve um questionamento de minha condição no mundo e uma oportunidade de reprojetar essa condição", explica.

 

Swartz, que em 1998 substituiria seu pai na presidência da Timberland, estava decidido a fazer da empresa um laboratório vivo para uma cultura movida pelo altruísmo, mas sem arriscar os negócios da família. Se tudo isso tem um ar de conversão religiosa, a semelhança pode estar em um processo paralelo, Apesar de ter sido educado dentro de uma linha mais secular da tradição judaica, há alguns anos Swartz abraçou a corrente ortodoxa. De alguma maneira, esse eterno insone (para ele bastam quatro horas de sono por noite) hoje dedica quase tanto tempo aos estudos da Torá e a atividades filantrópicas quanto ao seu trabalho. "Ele é surpreendente. Poucas vezes encontrei um voluntário com tamanha capacidade de estimular as pessoas", testemunha Barry Schrage, presidente da Combined Jewish Philanthropies, organização filantrópica judaica com sede em Boston. Apesar de conhecer seu negócio por dentro e por fora, não é fácil fazer Swartz falar do assunto. "Se eu me orgulho dos sapatos e botas que produzimos? Imensamente! Mas produzir bons acessórios não basta. Só consigo valorizar sapatos ou roupas se houver uma proposta diferente", esclarece.

 

Com certeza a busca de Swartz criou uma cultura de união na Timberland, o que fica claro até para quem não é da empresa. O manobrista, por exemplo, quando perguntado sobre o pessoal da Tyco International, que costumava usar o mesmo estacionamento em Stratham, New Hampshire, afirmou: "Aquele pessoal é bem diferente desse". No estacionamento, as melhores vagas são reservadas para os funcionários que têm carros híbridos, do tipo flex. Logo após a entrada principal fica o Community Impact Center, composto de um quadro de avisos e um computador para que as pessoas se inscrevam em um dos projetos de voluntariado ou proponham uma iniciativa filantrópica. Em seguida chega-se ao escritório local da ONG City Year, acomodada nas instalações da Timberland.

 

Betsy Blaisdell, gerente de assuntos ambientais da Timberland, diverte-se quando lembra quanto se assustou no início apenas com a idéia de trabalhar para uma empresa de grande porte. Com o apoio de Swartz, Betsy conseguiu colocar em prática iniciativas como a instituição de um incentivo no valor de US$ 3 mil para os funcionários que comprassem veículos do tipo flex ou o painel solar de US$ 3,5 milhões no centro de distribuição da empresa Apesar de fornecer 60% da energia do centro, a medida pode precisar de duas décadas para começar a dar retorno – o que não representa um problema para Swartz.

 

Para a Timberland, trabalho voluntário não é algo que se faz apenas uma vez por ano. Sempre há algum projeto filantrópico em andamento, e muitos deles foram expostos no evento Serv-a-palooza, ocrrido em setembro do ano passado. Os projetos de 2005 incluíram um mutirão para a limpeza e recuperação de espaços públicos em Lawrence, Massachusetts, e um programa de melhorias de um centro de apoio a crianças com deficiência física em Ho Chi Minh (ex-Saigon), capital do Vietnã. A Timberland apóia essas iniciativas por princípios ideológicos, mas os potenciais benefícios corporativos são inegáveis. "Há muitas coisas que as pessoas fazem para montar as equipes. Elas recorrem a consultores, organizam programas de exercícios, fazem reuniões fora da empresa. Além de não custar nada, o serviço voluntário também resulta em benefícios paralelos", atesta Danette Wineberg, assessora-geral da Timberland.

 

Na pesquisa mais recente feita com os funcionários, 75% dos entrevistados declararam que escolheriam a empresa novamente se estivessem em busca de emprego. E para 79% a fama da Timberland exerceu papel importante na decisão de aceitar a oferta de trabalho. Michael Moody, advogado da empresa, dá seu testemunho: "Adoro meu trabalho. Os valores essenciais são espírito humanitário, humildade, integridade e excelência, e vejo que eles são a base de todas nossas negociações".

 

Como bem mostra a argumentação de Swartz aos executivos do McDonald's, para o presidente da empresa o trabalho social constitui um grande diferencial da Timberland para seus atuais e potenciais clientes, Em outubro de 2004, como parte das comemorações de seu trigésimo aniversário, a Foot Locker, um dos maiores varejistas do setor de calçados nos Estados Unidos, convidou as cinco principais marcas para participar de uma imensa conferência sobre liderança. Cada uma tentou destacar-se como pôde: a Reebok, por exemplo, contratou o rapper 50 Cent. A Timberland levou Jeffrey Swartz e um grupo de jovens que havia um ano prestavam serviços para a ONG City Year.

 

E qual foi o presente de aniversário da Timberland a um grande cliente? Um convite para que quinze funcionários da Foot Locker ajudassem Swartz e outros altos executivos da empresa a limpar uma unidade de atendimento a crianças e mulheres. "A medida fortaleceu as duas marcas e intensificou nossa parceria. Foi um presente incomum, mas muito válido", conta Jeanine Zocks, diretora de marketing esportivo da Foot Locker.

 

Porém, ao mesmo tempo que a mensagem da Timberland vem chegando até seus parceiros, os consumidores finais dos produtos parecem não ter nenhuma idéia das preocupações que movem a marca - e ninguém sabe se eles valorizam essa postura. Na opinião de John Shanley, analista sênior do setor de calçados e artigos esportivos do Susquehanna Financial Group, "quem consome a grande maioria dos calçados são os adolescentes, e muitos deles não acreditam em propaganda. Por isso a comunicação é tão difícil".

Swartz argumenta que é apenas uma questão de tempo para que os consumidores comecem a recusar produtos de empresas que não digam o que estão fazendo pela comunidade. "Eu acredito que virá uma grande cobrança não só no que se refere ao produto de sua empresa, mas ao modo como ele é feito; não só ao local de produção, mas também em relação às circunstâncias; não somente em relação à filosofia ambiental, mas às práticas adotadas. Creio que há uma tempestade no horizonte para aqueles que acham que basta fazer bem-feito”.Para ajudar essa tempestade a ganhar força, Swartz está atravessando o planeta: comparece a reuniões não programadas em lojas de varejo de vários lugares, e vai ao chão de fábrica das empresas fornecedoras para ajudar a identificar problemas.

 

Algumas vezes, as bandeiras de Swartz causam tumulto. Embora a religião judaica não constitua parte da Timberland, ela é tão visceral para Swartz que o executivo tem dificuldades para distinguir seu papel como presidente do conselho do de defensor das causas judaicas. Em 2002, Swartz causou alvoroço quando o jornal The Jerusalem Post divulgou alguns comentários do executivo sobre o conflito árabe-israelense. "O boicote à empresa começou duas horas depois da publicação on-line", conta Swartz. Foi uma dolorosa lição sobre a necessidade de separar as coisas. "Escrevi uma nota para a empresa pedindo desculpas por ter passado dos limites", lembra.

 

Talvez o maior desafio de Jeffrey Swartz seja convencer Wall Street em relação ao lado benevolente de seu projeto. “Jeff pode bradar aos quatro ventos e garantir que sua proposta contribui para os números da empresa, mas a verdade é que ainda não temos como conferir isso" ressalta Samantha Beinhacker, presidente da New Capital Consulting, firma de consultoria em empreendedorismo social. Todos concordam que a marca é um sucesso, mas, na opinião do analista John Shanley, "os investidores querem mesmo é ver a Timberland aumentando os dividendos ou share buybacks (recompra de ações). Ninguém investe na Timberland só porque o Jeff é um sujeito legal. Eles querem resultados". Shanley classifica a Timberland como uma empresa "neutra", não por causa do altruísmo, mas sim pela atual tendência da moda em valorizar mais os sapatos do tipo tênis do que as botas.

 

Essa mudança na moda atingiu a Timberland no segundo trimestre de 2005, quando o valor das ações da empresa caiu 18%. Embora a maioria achasse que provavelmente era apenas sazonal e não uma tendência, vale imaginar o que teria acontecido com o modelo proposto pela Timberland se as coisas de fato tivessem ido mal. O exemplo de cautela vem da trajetória da Levi's Strauss. Graças a sua "gestão inovadora", no passado a Levi's chegou a receber os elogios hoje atribuídos à Timberland por sua atuação social -e também era considerada pelo mercado uma bem-sucedida fabricante de roupas e acessórios. Hoje, ninguém recomenda a compra de ações da Levi's. O motivo? A empresa perdeu o prumo, em grande parte porque o antigo presidente e herdeiro Robert Haas gastou grandes quantidades de tempo e dinheiro preocupando-se em ser um cara legal, com medidas como bônus aos funcionários que demonstrassem liderança "aspiracional", por exemplo.

 

Na opinião de Swartz, as atividades sociais da Levi's e seus problemas de resultado não estão relacionados. O executivo conta com a vantagem de já ter enfrentado uma crise semelhante: em um período que hoje faz parte da mitologia da Timberland, Swartz, então diretor operacional, exagerou na ampliação da empresa e a levou para um aperto de liquidez em 1995. Um banqueiro chegou a dizer que estava na hora de se dedicar ao que era sério. Swartz foi para casa desolado e encontrou um prospecto que falava de um projeto de voluntariado. "Comecei a chorar porque pensei: 'O que esses caras estão fazendo? Será que eles sabem que estamos em maus lençóis?'" Mas Swartz concluiu que, se seus colaboradores de fato tinham envolvimento com a causa, ele também deveria ter. É, em vez de seguir o conselho do banqueiro, mandou dobrar a quantidade de horas pagas dedicadas ao voluntariado -e conseguiu fazer a Timberland dar a volta por cima.

 

É claro que, para Swartz, é relativamente fácil rebater seus críticos. Embora a Timberland seja uma empresa de capital aberto, 69% do poder de votos está em mãos da família do empresário. Sem dívidas e com um bom caixa, a companhia apresentou nove trimestres de lucratividade recorde antes da "falha" de 2005. Mas não seria mais fácil perseguir seus objetivos sociais em uma ONG ou em uma empresa privada? Na opinião dele, não. "O único modo de dar credibilidade ao modelo é de uma maneira aberta e transparente. Se você quer comprovar que atividade comercial e justiça não são idéias incongruentes, é preciso demonstrar isso de um modo claro, permanente e verificável."

 

Capitalista convicto, Swartz acredita que é preciso ouvir o mercado mesmo quando se deseja que ele adote novas métricas para o sucesso. Embora a idéia ofenda os puristas, significa que ele não exclui os fornecedores imediatamente após uma infração trabalhista. Em vez disso, prefere usar "o envolvimento construtivo" para estimulá-los a alterar suas políticas e assim manter os empregos. E, ainda que as camisetas de algodão orgânico sejam mais corretas ecologicamente, Swartz prefere criar demanda para o produto com o tempo em vez de forçar a presença do artigo no mercado e pressionar as margens.

 

Será que um homem e seu grupo de seguidores de fato podem mudar o papel da empresa? Na opinião de Swartz, é apenas questão de tempo. Mas, ainda que não acreditasse, não teria alternativa a não ser seguir em frente. "Não se espera que as pessoas concluam a tarefa", afirma, citando um texto judaico. "Nem é permitido abandonar a missão”.Tudo o que você deve fazer é seguir o caminho.

 

A reportagem é de Jennifer Reingold, da redação da revista Fast Company.


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