Entre o Azedo e o Doce

HSM Management 56 Maio - Junho 2006

 

Betania Tanure, professora da Fundação Dom Cabral, decifra alguns enigmas da gestão no mundo e no Brasil, com base em pesquisas com executivos e estudos de caso. Segundo ela, as empresas bem-sucedidas equilibram as necessidades de racionalizar e revitalizar, entre outros aspectos.

 

Nestes primeiros anos do milênio, o mundo mudou de forma radical. Na história da humanidade, poucas gerações acompanharam processos de transformação tão brutais e velozes. A metamorfose não aboliu necessariamente o que já existia, mas adicionou novas modalidades de conduta. No que se refere às empresas, muitos dirigentes encontram-se hoje hesitantes entre o respeito às consagradas doutrinas de gestão e o desafio de gerir novos enigmas e paradoxos.

 

O alvo mudou de grandeza para competitividade, de peso para agilidade, de foco no produto para foco no cliente e de desempenho a qualquer custo para desempenho sustentável. No plano das relações humanas, a necessidade clara é substituir obediência por autodisciplina, lealdade pessoal por compromisso, exercício de mando por exercício de orientação e apoio.

 

Sob os novos ventos, muitas empresas que se gabavam da solidez têm experimentado o declínio. Ocorre uma lenta reversão de expectativas, na qual gestores são acometidos da patologia do subdesempenho satisfatório.Algumas organizações obtêm lucros anuais significativos, embora insatisfatórios se levada em consideração a perspectiva da sustentabilidade.

 

Uma empresa bem-sucedida nessas condições é tentada a negar a realidade.

Durante longo período, os atores do processo se movimentam por inércia, atribuindo o declínio a fatores externos, ditos incontroláveis. Ao mesmo tempo, a ambição é reduzida. Nesse quadro negativo, o caminho é de regressão.

 

Vale analisar um pouco a gênese desses processos. Por determinação, por competência ou por "sorte", a organização desenvolve uma estratégia de negócio que conduz desempenho superior. Toma-se competitiva e multiplica seus resultados. O crescimento traz reconhecimento e comemoração. Em alguns casos, os dirigentes tornam-se estrelas das revistas de negócios e são convidados a proferir palestras. Logo se convencem de que todo o sucesso se deve ao brilhantismo de suas idéias.Em resultado, crêem que é preciso incrementar o controle e a proteção de seus métodos consagrados. A empresa continua crescendo e os funcionários reforçam a idéia de que seus chefes são geniais. Isso gera um círculo de reforço positivo.

 

Ao se julgarem os melhores, esses executivos adquirem "direito" à arrogância. Recusam-se a modificar comportamentos. Negam-se a ouvir os que têm outras referências e tratam com prepotência parceiros, fornecedores e clientes. No ambiente interno, começam a progredir os aduladores politiqueiros. Quem defende os interesses do consumidor ou levanta questões perturbadoras acaba por ser marginalizado. Ânimo e paixão são substituídos por obediência e medo. Paulatinamente, a empresa perde energia e caminha para o subdesempenho satisfatório. Por fim, enfrenta uma grave crise.

 

Esse é um quadro mundial, que não exclui nenhum país ou região do planeta. No Brasil, essa patologia é reforçada pela crença no incrementalismo. Os defensores dessa doutrina consideram "mudança radical" um conceito "sangrento" e sem sofisticação. Agarrados a seus paradigmas, não são capazes de perceber as mudanças necessárias no novo contexto. Especialmente nos últimos 15 anos, tal situação tem arrastado muitas empresas brasileiras para a corrente da obsolescência.' Em boa parte delas, a mudança genuinamente radical somente ocorre quando já se estabeleceu uma séria crise financeira. Nesse contexto, as lideranças mais valorizadas são aquelas que conseguem antever a crise e desenvolver métodos profiláticos e de fortalecimento da corporação.

 

No entanto, há organizações, embora raras, que foram desde o início estruturadas para atuar com dinamismo e absorver o novo. No Brasil, a Natura oferece excelente exemplo de processo de gestão diferenciado, em que a construção de destinos compartilhados entre os diversos atores resultou em desempenho superior, sem a necessidade de mudanças radicais. Nenhum golpe de sorte garantiu à Natura o acesso às fórmulas de sucesso. Para alcançá-lo, o trio diretivo composto por Luiz Seabra, Guilherme Leal e Pedro Passos precisou de disposição permanente para aprender e de coragem para romper com os padrões ultrapassados, inclusive para gerir o processo sucessório, escolhendo como presidente Alessandro Carlutti. Temos no País outras experiências que vale lembrar, como a de José Carlos Grubisich na Braskem e a de Geraldo Carbone no BankBoston. Encontramos alguns pontos comuns nessas lições bem-sucedidas:

 

1. Gestão do equilíbrio agridoce.

2. Criação de um novo ambiente revitalizador.

3. Construção de relações de confiança e percepção de justiça.

 

Gestão do equilíbrio agridoce

 

Na busca por desempenho superior, a grande virtude é o equilíbrio. É fundamental que cada gestor saiba empregar com sabedoria os temperos da "culinária agridoce", conceito que explorei com Sumantra Ghoshal em trabalho de pesquisa que incluiu também o Brasil. A face "azeda" -sempre necessária- dessa conduta está ligada à racionalização, normalmente vista como desagradável. Poucos gestores sentem-se à vontade na implementação de processos de tal natureza, que incluem fechamento de fábricas, venda de unidades de negócios, reorganização do portfólio de atividades e produtos, cortes de custos, demissão e eliminação de privilégios. A dimensão "doce" se apresenta na iniciativa de revitalização, tida como agradável e, prazerosa. Também necessária, está associada ao crescimento, ao desenvolvimento, ao investimento nas pessoas e ao desafio coletivo de superar desempenhos.

 

As dimensões "doce" e "azeda",quando simultâneas, geram resultados mais consistentes e duradouros. A contínua racionalização disponibiliza os recursos, inclusive financeiros e humanos, para o crescimento. E o processo de revitalização permanente produz energia capaz de sustentar a melhoria ininterrupta da produtividade. Crescer sem essa melhoria é como construir castelos de cartas: um sopro de vento fará tudo desmoronar. Por outro lado, o foco exclusivo na produtividade cria também um processo de degradação, drenando a energia capaz de impulsionar uma nova fase de crescimento. As pessoas não têm orgulho de trabalhar em uma organização cuja perspectiva é fundamentalmente de retração.

 

Nos anos 90, o Brasil assistiu ao rápido declínio da Mesbla, empresa tradicional, fundada em 1912. Após demissão de milhares de funcionários, cortes de gastos e alteração do mix de produtos, o desempenho melhorou substancialmente. No entanto, essas medidas não puderam evitar a falência. O que, afinal, não funcionou? A resposta não é simples, mas há evidências de que a reestruturação se deu pela metade. A Mesbla aprendeu a enxugar, reestruturar e racionalizar, mas não conseguiu reunir a energia e a coragem necessárias naquele momento para criar novas oportunidades e crescer.

 

A experiência brasileira tem exemplos do fenômeno contrário: empresas, como a Inepar, que buscaram desempenho superior apostando unicamente no crescimento, sem dar a mesma ênfase à produtividade e à racionalização. A análise de casos como esses nos ajuda a concluir que o desempenho sustentado se baseia na capacidade de administrar a tensão entre duas necessidades permanentes: racionalizar e revitalizar.

 

Criação de um novo ambiente revitalizador

 

Nos últimos anos, o maior desafio das empresas brasileiras foi migrar de um ambiente regulamentado para um mercado de alta competitividade. Para algumas, como Mesbla, o resultado foi o fracasso. Para outras, como Natura, Banco Itaú, Magazine Luiza, Brasilprev, Gerdau e AmBev, a experiência produziu histórias de crescimento sustentado. Tais exemplos revelam diferenças fundamentais no que se refere aos valores, à diversidade dos mercados (e, portanto, à natureza da competição) e aos estilos de liderança predominantes nas organizações que atingem esse patamar. Mas, ainda assim, observam-se características comuns entre elas. Destacam-se a consistência intrínseca do modelo de gestão adotado (goste-se ou não dele) e a prática permanente de suas dimensões "doce" e "azeda". Isso confirma que gerenciar a angústia e o sofrimento da fase "azeda" é” um grande desafio para quem busca a revitalização das pessoas.

 

Não é por acaso que diversas outras empresas também investem em programas de transformação da cultura organizacional com foco especial no estilo de liderança corporativa. Freqüentemente, a proposta é alterar comportamentos e reconstruir toda a organização. Em muitos casos, entretanto, a ambicionada metamorfose simplesmente não ocorre. E por quê? Para discutir uma solução para o enigma, é preciso analisar com profundidade uma das consagradas teorias, a de que "tudo se resolve com a transformação do modelo mental". Ora, a experiência revela que adultos raramente alteram suas atitudes fundamentais, exceto em situações críticas ou após eventos realmente traumáticos.

 

Deve-se concluir, então, que os líderes têm de se conformar com o padrão seguido por suas equipes de trabalho? Muitas organizações descobriram que não - isto é, que é possível revitalizar pessoas sem necessariamente mudar suas atitudes fundamentais. O mesmo indivíduo, com a mesma atitude e os mesmos traços de personalidade pode comportar-se de maneira muito diversa em contextos diferentes. O desafio dos gestores é, portanto, criar novos ambientes revitalizadores. Toda empresa tem uma cultura que contribuiu para modelar as formas de pensar, sentir e agir. Para alterar comportamentos, é preciso que a paisagem circundante seja reconstruída. É necessário, sobretudo, incluir novos "perfumes" no lugar.

 

O mundo empresarial brasileiro oferece ótimo exemplo na história de Fernando Tigre, que conduziu o processo de revitalização da AIpargatas. Ao redesenhar o cenário corporativo, o executivo "mostrou" a importância das pessoas, sendo consistente na aplicação dos valores fundamentais. Tigre percebeu que era preciso criar um contexto no qual cada um tivesse chance de desenvolver seu potencial. Mas nem por isso deixou de tomar as duras medidas que se faziam necessárias e cobrar resultados. Aos poucos, restabeleceu-se o sentimento de justiça e confiança, fundamental para que os colaboradores se comprometessem com o projeto de mudança. A Alpargatas vivenciou uma mudança de comando, quando Fernando Tigre passou o bastão para seu sucessor, Márcio Utsch, que imprimiu um estilo próprio preservando os pilares do projeto de recuperação da empresa. O sucesso dessa estratégia é evidenciado pelos resultados e pelo crescimento constante nos últimos anos.

 

O processo de revitalização da TAP tem premissas básicas semelhantes. Em um ambiente cultural de típica empresa estatal portuguesa, Fernando Pinto -orquestrando um time de outros três brasileiros, Luiz Mór, Manuel Torres e Michael Connoly - despertou nas pessoas o desejo de colaborar para a reversão de uma grave situação financeira. Foi grande o impacto das decisões "azedas", especialmente na esfera sindical, já que Portugal se caracteriza pelo alto grau de rigidez da legislação trabalhista. Contudo, essas medidas geradoras de sofrimento foram compensadas pela valorização das pessoas e pelo projeto de revitalização ancorado na grande capacidade de comunicação dos brasileiros.

 

Dessa forma, os dirigentes conduziram o coração dos portugueses para um novo e desafiador projeto. Na TAP, o estabelecimento de compromissos constituiu-se em fator-chave do processo de revitalização. As pessoas readquiriram a auto-estima e assumiram a co-autoria do novo projeto.

 

Relações de confiança e percepção de justiça

 

Para viabilizar essa mudança de patamar na busca de resultados, é fundamental que as pessoas estejam confiantes e se sintam comprometidas. É preciso ainda que entrem voluntariamente no processo e somente farão isso quando se identificarem com a causa. Uma barreira é a competição desenfreada, característica de certos modelos organizacionais, que tem atemorizado os indivíduos. Eles passam a se preocupar mais com o desempenho pessoal do que com o da empresa. Vale assinalar que nem sempre a performance individual se traduz em resultados de destaque superiores para a corporação.

 

Em profunda pesquisa que realizei recentemente, em conjunto com Antônio Moreira, com mais de 1,3 mil executivos brasileiros, detectei que mais da metade deles não está satisfeita com as relações de confiança estabelecidas na organização. A dor provocada por crises mais graves de relacionamento com superiores, segundo percepção desses profissionais, assemelha-se, muitas vezes, à dor da perda de um ente querido. "Estou vendendo minha alma para o diabo" é uma expressão que reflete um sentimento característico observado em empresas com modelo muito competitivo e que não estão atentas ao equilíbrio dado pela percepção de confiança e justiça.

 

No jogo da competitividade, talvez seja importante enfatizar também que as pessoas obtêm prazer no trabalho, realizam sonhos e valorizam a posição de poder. No entanto, é inegável a distância entre discurso e prática no que diz respeito à importância das pessoas na empresa. O drama é que alguns indivíduos estão perto de seu limite, embora as organizações ainda não o estejam. Fica aqui colocada a necessidade de uma reflexão sobre a sustentabilidade desse jogo, seja do ponto de vista do indivíduo, seja do ponto de vista da empresa que busca resultados superiores sustentáveis.

 

O peso da liderança

 

Os líderes são fundamentais para que as empresas alcancem êxito nos fatores de sucesso que influenciam sua capacidade nesse sentido

 

1.      O perfil do líder

Pesquisas recentes, ainda não publicadas em sua totalidade - uma que desenvolvemos eu e Roberto Duarte, em parceria com a Wharton School, da University of Pennsylvania, e outra com meu colega Paul Evans, do Insead -, ampliam os achados do trabalho que fiz com Sumantra Ghoshal, da London Business School. Mostram que os líderes transformadores, em suas ações, efetivamente geram algum grau de sofrimento e desconforto. Afinal, despertam as pessoas para a realidade, pedem respostas a problemas antes ignorados, às vezes tomam medidas impopulares. Ao mesmo tempo, mostram-se dispostos a orientar e cooperar. Inspiram confiança e geram o sentimento de justiça. São pessoas que abandonaram o paternalismo protetor, típico da cultura gerencial brasileira, mas que agem com respeito pelos colaboradores, estimulando talentos e maximizando competências.

 

Esses líderes são capazes de identificar fracassos sem disseminar o abatimento. Têm visão clara de seus objetivos e desafiam as pessoas que decidem seguir na mesma direção.

 

2.      A atenção que o líder dá ao "cheiro do lugar"

Sumantra Ghoshal, meu parceiro na produção do livro Estratégia e Gestão Empresarial e no aprofundamento de muitos dos conceitos aqui discutidos, morou durante vários anos em Fontainebleau. Eu o conheci nessa bela cidade a 60 quilômetros de Paris, sede do lnsead, conceituada escola de administração de empresa na qual tenho o privilégio de atuar desde 1990.

 

Uma vez por ano, nas férias de julho, Sumantra visitava Calcutá, sua cidade natal, na Índia. Nessa época, a temperatura na região chega aos 40 graus e a umidade do ar supera os 95%. Sumantra sentia-se muito cansado e não tinha muita disposição para sair de casa. No entanto, quando retornava a Fontainebleau, na primavera, transformava-se por completo. A cidade está cercada por uma das mais belas florestas de toda a Europa. Pelas manhãs Sumantra saía para uma caminhada. Logo parecia sentir-se rejuvenescido, começava a correr, a movimentar-se com dinamismo e curiosidade. O clima ameno e o perfume das flores estimulavam a mudança.

 

Narro essa história pessoal para ilustrar o fenômeno da mudança do "cheiro do lugar" nas organizações. Quando tratamos de buscar desempenho superior, certamente devemos analisar uma série de fatores estratégicos. No entanto, nunca é demais lembrar que empresas são constituídas, sobretudo de pessoas. Desse modo, na "arena" organizacional, cabe fundamentalmente aos dirigentes estabelecer um ambiente revitalizador. Cabe aos gestores brasileiros não reproduzir o verão de Calcutá, mas semear árvores capazes de florir, cultivá-Ias com carinho e, de tempos em tempos, ter a coragem de podar alguns de seus galhos.

 

3.      A história de vida do líder

Oitenta por cento dos executivos brasileiros entrevistados revelaram que as características que sustentam seu processo de liderança foram desenvolvidas na infância e na primeira fase da adolescência, períodos em que os limites eram claramente vivenciados e o desafio de sua superação era estimulador. Será que os pais e mães executivos estão conseguindo criar um ambiente desafiador para a próxima geração?

 

Referências bibliográficas

 

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JONES, Gareth; GOFFEE, Rob. The Character of a Corporation: How Your Company's Culture Can Make or Bread Your Business. London: HarperCollins Publishers, 1998.

MINTZBERG, Henry; AHLSTRAND, Bruce; LAMPEL, Joseph. Strategy Bites Back: It Is a Lot More, and Less, Than You Ever Imagined. New Jersey: Pearson, 2005.

SCHEIN, Edgar. Organizational Culture and Leadership. 3. ed. New York: Wiley Publishers, 2004.


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