Uma Nova Música Para as Empresas
 

Os pontos comuns da liderança, do desempenho e do trabalho em equipe em dois universos aparentemente díspares: o da música erudita e o da administração de negócios. Por Ben Zander

 

Sinopse:

 

Seja no mundo da música, seja no ambiente corporativo, um líder que se sente superior a sua equipe sempre terá a tendência de ignorar as vozes das pessoas que poderiam engrandecer sua visão. Quem faz essa afirmação é o regente Ben Zander, diretor da Orquestra Filarmônica de Boston, que, além de ser um dos músicos mais celebrados da atualidade, é um dos mais requisitados pensadores dos circuitos mundiais de gestão.

 

Algumas das idéias de Zander sobre liderança, desempenho e trabalho em equipe estão mostradas nestes highlights de seu livro A Arte da Possibilidade (Ed. Campus). Aqui, o maestro conta, inclusive, como se deu sua transformação da arrogância para a capacidade de inspirar o talento dos membros de sua orquestra. Ele aprendeu, por exemplo, que duas das principais características da verdadeira liderança são a renúncia e o sacrifício.

 

Exemplificando seu raciocínio com peças de Mahler, Schubert e Chopin, entre outros mestres da música erudita, Zander surpreende com iniciativas como a de criticar um pianista por ele tocar "com duas pernas", quando deveria ser um "pianista de uma perna só". No final do artigo, o maestro comenta que a diferença entre Salieris e Mozarts, tanto no ambiente musical como no corporativo, está na "fagulha criativa", pouco estimulada pelas escolas de administração.

 

Benjamin Zander, diretor e regente da renomada Orquestra Filarmônica de Boston, Massachusetts, EUA, escreveu o best seIler, A Arte da Possibilidade (ed. Campus), com sua esposa, Rosamund Stone Zander, e se transformou em um dos palestrantes mais conceituados do mundo empresarial. Ele estará na Expo Management World 2004, em novembro próximo.

 

Não é raro um maestro ser seduzido pela extraordinária atenção do público a seu brilhante desempenho e chegar a acreditar que é um ser superior, um superastro acima de tudo e de todos. Os músicos da orquestra se acostumam com isso, e acabam perdoando muitas de suas grosserias ou transgressões pelo fato de ele ser um "gênio".

 

Para um músico, portanto, pode parecer estranho que o mundo corporativo se interesse em conhecer os pontos de vista de um diretor de orquestra sobre liderança ou que a metáfora da orquestra seja tão freqüentemente utilizada na literatura de gestão empresaria! Afinal, sinceramente, a profissão de diretor de orquestra é uma das últimas fortalezas do totalitarismo no mundo! A vaidade e a tirania são muito comuns no mundo da música.

 

Talvez por isso, em recente estudo de tendências no trabalho, na seção de profissões e satisfação com o trabalho, a profissão de músico de orquestra tenha aparecido abaixo da profissão de guarda de prisão.

 

Mudança de estilo

 

Recentemente, depois de diversos anos exercendo a profissão de diretor de orquestra, dei-me conta de que um maestro não emite som algum. Sua fotografia poderá aparecer na capa de um CD, mas seu verdadeiro poder deriva de sua capacidade de dar poder a outras pessoas.

 

Então, comecei a me perguntar: "O que faz com que uma orquestra soe tão vital e compenetrada com a música?". Até então o que me interessava era outra questão: "Como estou me saindo?”.A mudança em meu comportamento foi tão evidente que os músicos começaram a perguntar o que tinha acontecido.

 

Antes de me fazer tais questionamentos, minha principal preocupação era a qualidade técnica que exibia diante da orquestra ou qual tinha sido a receptividade dos críticos a meu estilo de regência. Imaginava que uma reação positiva da parte deles me traria mais reconhecimento.

 

Agora, minha atenção se concentra em minha eficiência em desenvolver o talento e as emoções dos músicos com a finalidade de conseguir uma bela interpretação. Essa visão nunca surgiu enquanto eu partia do pressuposto de que detinha o poder absoluto e achava que os músicos eram meros instrumentos a minha disposição.

 

Faz algum tempo, quando preparava um concerto da Sexta Sinfonia de Mahler, gritei depois de uma passagem: "A percussão não entrou na hora!". Minutos depois, percebi que estava enganado, e que a percussão não devia mesmo entrar naquele momento específico. Por isso, desculpei-me com os percussionistas.

 

Mais tarde, já terminado o ensaio, três músicos se aproximaram e me confessaram em particular que não conseguiam lembrar-se da última vez em que um maestro havia-se desculpado com eles. Um deles comentou como era opressivo ver um maestro culpar a orquestra por seus erros. E muitos executivos me dizem que encontram esse mesmo tipo de comportamento em suas organizações.

 

Com a intenção de encontrar um modo de os músicos poderem se expressar, adotei o costume de colocar uma folha de papel em branco sobre cada atril nos ensaios. Isso permite que os músicos possam anotar qualquer comentário que considerem pertinente.

 

De minha parte, graças a esse sistema, posso dirigi-los melhor e colaborar para que todos obtenhamos uma interpretação melhor e mais bonita. No princípio, me enchi de coragem, achando que choveriam críticas, mas fiquei gratamente surpreso quando percebi que não era assim, e que os comentários raramente eram negativos.

 

Em um primeiro momento, e por motivos de rotina, os músicos limitavam seus comentários a temas de fundo mais prático, como a divisão das partituras. Pouco a pouco, quando foram se convencendo de que meu interesse era genuíno, de que eu realmente queria saber o que eles pensavam, começaram a me apoiar, o que não quer dizer que passaram a me bajular ou algo parecido.

 

Eles simplesmente reconheceram meu papel na orquestra como uma parte essencial e necessária para forjar sua interpretação musical. Atualmente, o costume da "folha em branco" é absolutamente normal em todas as orquestras que dirijo com freqüência, e os músicos o aceitam com naturalidade. E seus comentários costumam ser assinados, o que facilita o diálogo.

 

Quando retomo uma idéia de um músico sobre o andamento ou a estrutura de um movimento, sempre tento fazer contato visual com essa pessoa enquanto tocamos o movimento específico, seja no ensaio ou no concerto. De forma mágica, esse movimento se transforma em seu movimento, e o trabalho realizado se converte em uma "festa" compartilhada, impossível de ser descrita com palavras.

 

Visão global

 

Como uma pessoa que não dá atenção às ondas do mar ou perde contato com as folhas das árvores agitadas pela brisa, o músico se distancia da essência de sua música quando toca sozinho e se concentra unicamente na execução de notas individuais e de harmonias perfeitas.

 

A vida flui quando prestamos atenção aos padrões vitais que compõem a totalidade de nossa existência. Da mesma forma, a música vai em crescendo quando quem a executa sabe distinguir entre as notas cujo impulso define a estrutura da peça e aquelas que são puramente decorativas.

 

A vida adquire forma e sentido quando somos capazes de transcender as barreiras da sobrevivência pessoal e nos transformamos no conduto único e inimitável que canaliza a energia vital. É assim que a música se revela esplendorosa quando seu executante sabe ligar as notas estruturais, como o pássaro que se balança delicadamente sobre um único ponto de apoio.

 

Há muitos anos aprendi harmonia no conservatório de Florença, onde nos ensinavam a identificar a característica de cada acorde separadamente. Nossos professores nunca nos sugeriam que existiam conexões entre um acorde e outro, o que nos mantinha à margem da estrutura harmônica e do fluxo musical.

 

Em outras palavras, não enxergávamos uma imagem global da peça. Quando se consegue vê-Ia como Um todo, podem-se identificar todos os traços e a estrutura inteira, ouve-se e se percebe um significado diferente, muitas vezes bem mais intenso do que o que se distingue normalmente. Apenas quando se revela a forma essencial da música é possível sentir verdadeira paixão por ela.

 

Força vital

 

Um jovem pianista tocava um prelúdio de Chopin em minha aula. Embora tivéssemos quase chegado a conseguir que soasse como queríamos, não nos sentíamos satisfeitos com o resultado. lntelectualmente não cabia dúvida de que ele compreendia a peça sem dificuldade e inclusive sabia explicá-Ia a outro músico, mas não era capaz de transmitir a energia emocional em uma linguagem puramente musical.

 

Foi exatamente quando notei algo que acabou sendo a chave do enigma. Seu corpo permanecia tenso, rígido na vertica. "Eu gritei:” Você é um pianista com duas pernas, este é o seu problema!".

 

Disse então a ele que adotasse uma postura mais adequada, para permitir que sua energia corporal fluísse em uníssono com a música que tocava, e, de repente, ele alçou vôo. Alguns presentes respiraram aliviados, porque a mudança lhes permitia sentir aquela flecha emocional em toda a sua intensidade. Havia nascido um novo homem, que tocava piano "com uma perna só".

 

O presidente de uma empresa de Ohio, que estava presente, escreveu: "Fiquei tão emocionado que, quando voltei para casa, mandei que todos os meus funcionários seguissem seu exemplo e nossa empresa passou a ter 'uma perna só"'.

 

Nunca soube exatamente o que ele queria dizer com aquelas palavras, mas posso imaginar. O acesso à paixão permite colocar emoção nos esforços de, por exemplo, um plano de ação de uma empresa, pois é a razão de ser que permite organizar uma equipe, que dá poder para resolver conflitos individuais, que torna possível a comunicação interdepartamental de uma companhia.

 

Quero crer que aquele diretor de Ohio, quando voltou a sua empresa, dirigiu sua equipe com tal paixão e veemência que imediatamente atingiu o alvo, em mentes, em seus corpos e em seu coração. Quero crer que eles rapidamente conseguiram lembrar qual era sua missão e a razão de ser da empresa. Desde então, eu sei que, se alguém daquela equipe perde a orientação, seu diretor sabe reencaminhá-Io com sua eloquência e sua capacidade para continuarem juntos a jornada em direção a seu futuro.

 

Nos anos 50 conheci Jacqueline Du Pré. Ela tinha 15 anos e eu uns 20. Era uma adolescente inglesa magricela que com o tempo se trans formou na melhor violoncelista de sua geração. Havíamos tocado jun tos e me lembro que sua paixão era legendária.

 

Contam que aos 6 anos de idade ela participou de seu primeiro concurso e que andava pelos corredores carregando seu instrumento sobre a cabeça, sorrindo com entusiasmo. "Vejo que o concerto foi bem", alguém disse. Ela respondeu "O concerto ainda não começou”

 

Aos 6 anos, ]acqueline Du Pré já era um canal por meio do que fluía sua música. Possuía uma espécie de segurança radical a respeito de suas capacidades, característica que só possuem aqueles que entendem que executar música, neste caso, não tem nada a ver com mero esforço, mas sim com a energia que predispõe o público e o instrumento, para lhes permitir uma voz singular.

 

Como defendia a bailarina Martha Graham, existe uma vitalidade uma força vital, uma energia, uma inquietude que se transforma em ação por meio de nosso corpo posto que somos únicos, nossa expressão é única e, devido a esta singularidade, se a bloquearmos, não poderá jamais existir em outro meio e estará perdida. O mundo do não a terá. A nós não cabe julgar se é melhor ou pior, nem que valor tem, nem como se compara com outras expressões. Nosso dever é conseguir que permaneça viva, clara e direta, e manter aberto o canal por onde flui.

 

A lição de Schubert

 

Ministrei certa vez uma master class durante um festival em Newcastle, Inglaterra. Um dos estudantes presentes na aula era Jeffrey, um jovem tenor que havia conseguido um trabalho na famosa companhia de ópera do La Scala, de Milão, Itália.

 

Seu comportamento altivo mostrava que ele havia levado esse novo trabalho muito a sério. A peça em questão era Frühlingstraum (Sonho de Primavera), do Die Winterreise, de Schubert, um ciclo de canções que descrevem a tumultuada e depressiva viagem de um amante atormentado pelos dias gélidos da alma.

 

Nessa canção, o herói está sonhando com as flores de uma primavera passada, quando se deleitava no cálido abraço de sua amada. A música reúne alegria, regozijo, festa; de repente, um corvo emite um angustiante som e o herói desperta na fria escuridão.

 

Na metade do sonho, o herói confunde o gelo em sua janela com flores e pergunta: "Quem colocou estas flores? Quando ficarão verdes?". A resposta chega a ele: "...quando eu voltar a ter minha amada em meus braços". Apesar do tom alto da música, sabemos pela dinâmica e pelo fraseado que nunca, nunca mais ele voltará a tê-Ia em seus braços.

 

Essa peça de Schubert é uma das mais delicadas e sutis de seu repertório. Para ser interpretada como se deve, exige profunda compreensão de todos os traços de tristeza, vulnerabilidade e perda infinita. Mas quando Jeffrey a cantava não havia nenhum traço de melancolia; em seu lugar, desdobrava um glorioso fluxo de som, que denotava uma pronunciada autoconsciência de seu talento, o tipo de autoconsciência própria de um homem que se leva a sério demais.

 

Como podia induzi-lo a ver além de si próprio e a se transformar em um condutor da paixão expressiva da música? Perguntei-lhe se estava disposto a que eu fosse seu mentor.

jeffrey respondeu que lhe agradava a idéia do mentor, sem saber na realidade o que isso implicava.

 

Durante 45 minutos estive engajado em uma batalha gigantesca com Jeffrey, ou, melhor dizendo, não com Jeffrey, mas com seu orgulho, seu treinamento vocal, sua necessidade de se mostrar e os anos de aplausos que havia recebido por sua potente voz.

 

A cada camada que eu conseguia penetrar, ele se aproximava mais da vulnerabilidade crua de Schubert e sua voz começou a revelar a alma humana que a animava. Seu corpo, inclusive, suavizou-se e se tomou frágil. Na parte final, a voz de Jeffrey, àquela altura quase inaudível, conseguiu nos comover de tal forma que parecia vir de algum lugar fora do próprio Jeffrey. Ninguém se moveu; todos nos unimos no silêncio. Segundos depois, o salão explodiu em aplausos.

 

Agradeci publicamente a Jeffrey por sua disposição de abandonar seu orgulho, seu treinamento e sua força vocal. Também expliquei que nosso aplauso era pelo sacrifício que havia realizado para nos levar a um lugar melhor, a um lugar pleno de entendimento. Quando alguém abandona seu orgulho para revelar uma verdade aos demais, disse-lhe, acontece algo profundamente comovedor.

 

Uma das características da verdadeira liderança é a renúncia e o sacrifício. Se abandonarmos nossa noção de ego, se renunciarmos ao impulso de nos convertermos em seres calculistas e cínicos, conseguiremos nos ligar aos demais. Assim acontece na música, nas empresas, na vida.

 

Texto extraído da HSM Management 43

Março-abril 2004

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